A Desvalorização dos Serviços Linguísticos

Quem trabalha no ramo das línguas já está habituado a ter as suas competências desvalorizadas. Afinal, a linguística não é um campo tão especializado quanto a medicina, química ou direito. Se formos a um infantário qualquer e perguntarmos às crianças o que elas querem ser quando crescerem, as respostas serão algo como cientista, jogador de futebol, cantor, professor, canalizador… Raramente ouviremos as palavras “tradutor” ou “revisor”, estas não são vistas como profissões essenciais ou glamorosas. As competências linguísticas são desvalorizadas desde cedo na nossa sociedade. Afinal, quase todos, hoje em dia, sabem ler e escrever e, na maioria dos países, a aquisição de uma segunda língua faz parte da escolaridade obrigatória. O nível a que um profissional de linguística pode prestar um serviço é negligenciado.

A aquisição de competências linguísticas é vista como parte da vida, algo que qualquer um pode fazer. Claro, que se pode estudar e aprofundar essas competências, mas não é necessário na maior parte dos casos. Aprendem-se línguas estrangeiras por diversão, como uma competência adicional para outro trabalho, ou apenas para se desenrascar, nunca por se achar que adquirir um conhecimento profundo de uma língua é uma competência fundamental. A tradução, é mais do que falar e escrever em dois idiomas diferentes. Ser bilingue ou ter aprendido uma outra língua em profundidade não significa que se é um tradutor qualificado. Essa desvalorização social do trabalho linguístico não se reflecte apenas em salários mais baixos, mas também em menos trabalho disponível para especialistas em línguas. Toda a gente conhece alguém que é “bom a escrever” ou “sabe X idioma” e recorrem a essas pessoas para fazer um trabalho que deveriam estar a pagar um profissional para fazer. Muitas vezes, essas pessoas também são amigos ou familiares que fazem este trabalho de graça, tornando ainda mais difícil para os verdadeiros profissionais justificar os seus preços.

Isto acontece frequentemente a todos os freelancers, mas especialmente àqueles no ramo dos serviços linguísticos. As pessoas pedem orçamentos e, quando os recebem, reclamam que é caro demais e, afinal, a namorada do amigo, que trabalha num hotel e fala inglês fluentemente, pode fazer essa tradução por muito menos. Pode ser tentador reduzir os honorários para tornar os preços mais atraentes, mas os freelancers precisam de ter em mente que “família e amigos” não são os seus concorrentes directos, eles não são os profissionais que oferecem o mesmo tipo de serviço que eles. As pessoas recebem o que pagam, e se o seu desejo é obter uma tradução de qualidade inferior ou um texto abaixo das expectativas a um preço barato, então é isso que elas obterão. (No entanto, o que geralmente acontece é que os clientes querem trabalhos de alta qualidade pelo preço mais baixo).

Recentemente, deparei-me com um exemplo óbvio de uma empresa que não esteve disposta a investir em serviços linguísticos. Um novo restaurante local pagou por um anúncio num grande outdoor numa parte central da cidade. Quase toda a gente vai passar por ali mais tarde ou mais cedo. Este foi, certamente, um grande investimento de marketing bem pensado e aprovado por todos os níveis gerenciais. O design era simples, o logotipo ocupava mais da metade do espaço e o texto era directo: o nome do restaurante, o tipo de comida que eles servem e o endereço. No entanto, uma das 26 palavras foi escrita incorretamente e essa palavra foi “restaurante”, que escreveram “restautante”. Esse erro poderia ter sido detectado por qualquer pessoa, incluindo “amigos e familiares”, mas tal é a desvalorização dos serviços linguísticos que este restaurante, potencialmente, nem sequer considerou o impacto que um erro tipográfico poderia ter na sua publicidade. Um restaurante com um erro tipográfico na palavra que o define transmite a ideia que é um local propenso a ignorar as coisas, a faux-pas, a não se preocupar com os detalhes. Um restaurante que deixa passar um erro tipográfico num dos maiores outdoors da cidade também pode ser o tipo de restaurante que ignora datas de validade, regras de segurança alimentar, o facto de haver uma mosca na minha sopa ou que minha faca está suja. O meu palpite é que este restaurante, como muitos outros, não pensou em contratar um revisor e, provavelmente, pensou que poderiam fazer isso sozinhos ou pedir a um amigo. Um profissional de linguística teria detectado esse erro de imediato.

Claro que este é um exemplo flagrante e exagerado da diferença que a contratação de um profissional pode fazer na percepção pública de uma empresa e por que vale a pena contratar um profissional especializado em linguística e pagar-lhe um preço justo. Os linguistas (escritores, redatores, editores, revisores, tradutores, etc …) são altamente qualificados no que fazem. As suas competências vão além do conhecimento geral, pois passaram anos a aprender e aprimorar essas capacidades. É por isso que eles podem e devem cobrar mais do que os seus vizinhos ou amigos da escola que costumavam escrever histórias. Na tradução, em particular, a concorrência já é feroz entre prestadores de serviços qualificados por causa da globalização. Ganhar 0,05€ por palavra pode ser razoável em alguns países onde um Euro compra muito mais, mas na Europa, por exemplo, esse é um preço muito baixo que a maioria dos profissionais qualificados não pode cobrar. Depois, há também a diferença de honorários entre tradutores qualificados e pessoas que fazem traduções porque têm um conhecimento geral elevado de dois idiomas, com os clientes muitas vezes a optar por um serviço de qualidade média a um preço mais barato.

Embora a tendência para escolher o serviço mais barato, independentemente da qualidade, não seja exclusiva dos serviços linguísticos, esta é uma área em que isso ocorre com mais frequência devido ao modo como as competências linguísticas são vistas: fáceis de adquirir, não especializadas e generalizadas. Isto está, de facto, longe da verdade. Sim, a maioria das pessoas tem uma boa compreensão de leitura e escrita e, sim, muitas pessoas estudaram uma língua estrangeira, mas para prestar um serviço como tradução, redação ou revisão, é preciso muito mais do que as competências básicas. Para prestar excelentes serviços linguísticos, como os indivíduos e empresas deviam procurar, um linguista investiu uma quantidade considerável de tempo na sua formação. Não pediríamos a uma pessoa que cozinha um almoço e um jantar básicos para a família para cozinhar um banquete para a rainha, então por que é que pediríamos a alguém que gosta de ler nos seus tempos livres para fazer a revisão do conteúdo escrito da nossa empresa? Como profissionais de linguística, cabe-nos a nós manter a nossa dignidade intacta e não sucumbir à pressão de desvalorizar os nossos serviços continuando a oferecer serviços de alta qualidade a um preço justo.